segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

REFLEXÕES SOBRE O MODO DE VER A ARTE AFRICANA












Cristiano Neto*


Os olhares que impliquem análise e interpretação dos fenômenos de uma realidade cultural enquadram-se na tipologia de manifestações da actividade mental do humanos. Naturalmente, suas as percepções e escolhas estão condicionadas por diversos fatores, dos quais destaco: o próprio indivíduo, as ligações que estabelece no seu grupo de relações sociais e a natureza que o envolve, entendida como o universo ou o cosmo.
Creio não exagerar se disser que, no passado, a atitude de um produtor de Arte em África foi, em geral, semelhante à dos produtores de outras sociedades, sobretudo na escultura e pintura, pois as considerava produto do seu imaginário e não meras obras de arte.
Seria um medíocre observador aquele que ignorasse as finalidades para as quais eram construídas as habitações em determinadas sociedades Africanas, pois não é possível compreender-se a Arte desconhecendo os propósitos a que ela tem de servir. A verdade é que, quanto mais recuarmos na retrospectiva histórica, mais complexas são as finalidades que se crê serem servidas pela a Arte. O mesmo se aplica se sairmos das cidades dos países ditos “civilizados” e visitarmos Povos cujos modos de vida ainda se assemelham às condições em que viveram os nossos mais remotos ancestrais. Chamam alguns estudiosos a esses Povos normalmente de “primitivos”, não porque sejam mais simples do que nós, mas por estarem, a partir de um ponto de vista, mais distantes da concepção do estado desenvolvimento actual da generalidade das sociedades ocidentais, o que gera muitas vezes teses de que estagnaram no tempo e no espaço, tornando-se fechadas sobre si mesmas. Mas a verdade é que na sua produção artística e mesmo, por exemplo, na construção das suas habitações, podemos constatar o pragmatismo e objectividade da essência do labor dos ditos “primitivos”, virado para a utilidade fundamental, tendo em conta seu ambiente e natureza. Ou seja, suas habitações existem para protegê-los da chuva, do sol e vento e dos espíritos que geram tais fenómenos. As imagens das suas esculturas em madeira a partir de troncos de árvores representam e servem do ponto de vista simbólico para defenderem-se contra outros poderes tão reais quanto as forças da natureza na sua concepção.


É difícil para alguns autores e estudiosos entenderem os meandros de uma realidade de um grupo ou sociedade humana, pois o mergulho nas profundidades da identidade, ou seja, da essência cultural dos ditos Povos, só é possível se nos libertarmos de um primitivismo conceptual na análise e interpretação dos fenómenos culturais. Daí que seja importante uma introspecção a partir de cada um de nós, partindo do seguinte exemplo: recortamos do jornal diário o retrato do nosso músico ou desportista favorito, o qual integra a notícia de que o músico foi desclassificado para a final de um Concurso Internacional de Música, ou a notícia de que o desportista não conseguiu obter os valores mínimos para sua qualificação aos próximos Jogos Olímpicos. Perante um acto temperamental de tristeza por tais resultados negativos praticado por alguém que, numa atitude sancionatória, se atrevesse provocar danos na imagem de tais personalidades do nosso jornal, será que ficaríamos indiferentes? Certamente que reagiríamos em defesa da protecção da imagem do nosso ídolo, apesar de que tais danos não afectariam na realidade a pessoa do ídolo. É precisamente essa sensação aparentemente estranha e irracional de que os danos causados à imagem do retrato do nosso ídolo atingem a pessoa em causa, que sobrevive no subconsciente de muitos extractos das Sociedades em plena era da Internet. Creio que chegado este momento, estamos em condições de perceber que tais concepções existem e existirão no futuro em todas as sociedades independentemente do seu nível de desenvolvimento.
Finalmente, podemos afirmar que tal modo de representar a imagem da realidade é um fenômeno transversal nas Sociedades Humanas. Nas tradições, nos usos e costumes nacionais de alguns Povos, historicamente, praticaram-se e se praticam ainda rituais através do seu imaginário colectivo. Produziam pequenas imagens representativas de um inimigo de acordo com a sua tradição, perfuravam o coração do maltratado boneco ou o queimavam na esperança simbólica de que o inimigo sofresse com isso. Recordo que, actualmente, na Grã-Bretanha, celebra-se, em 5 de novembro anualmente, com pompa e circunstância, acompanhado de fogo-de-artifício, a Festa Popular da queima da efígie de Guy Fawes, o conspirador que quis fazer explodir as Casas do Parlamento, quando o Rei e seus Ministros aí se encontravam – daí se ter chamado a “Conspiração da Pólvora” a atitude, que foi descoberta, de Guy Fawes, executado em 5 de novembro de 1605, data celebrada até aos nossos dias.
Em jeito de conclusão, podemos afirmar que, aproximando-me de uma visão antropológica, considero que a cultura assenta necessariamente sobre a natureza entendida como Universo, pois a Cultura é uma especificidade Humana entendida na sua vertente dinâmica. O termo “primitivo” é de origem antroplógica e fez parte da interpretação evolucionista das primeiras escolas Antroplógicas do fim do século XIX e início do século XX. Mas é curioso que esse termo, mesmo na atualidade, ainda seja utilizado como reflexo de olhares ou visões preconceituosas de tal forma extremistas, que revelam profunda ignorância da evolução das Ciências Humanas. Ciente da complexidade deste tema, certamente muito fica por abordar, mas serve para iniciar a partilha de impressões com quem assim o entender, o que muito apreciaria.


* Artista Plástico e Investigador Angolano

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