À medida que o tempo avança vai-se ficando despovoado. OS eucaliptos dos anos detroem tudo em tono de nós
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Em acabando este livro apetece-me escrever um romance policial, ou antes um romance negro. Trago esta ideia há anos e chegou a altura de o fazer. - Sabes do que tenho vontade, tu? esperei que o silêncio retornasse suficientemente côncavo para as minhas palavras caberem lá dentro e esvaziei o púcaro Fazer um romance negro. Recebi de resposta - Ando a pensar nisso desde que comecei. Demorámo-nos às voltas com o plano de fazer o tal romance negro a meias, em capítulos alternados, depois o Zé teve aqueles problemas que acabaram numa morte horrível e, mesmo sem ele, não abandonei a cisma. Se for capaz de o pôr em marcha dedico-lho, claro, nós que não dedicámos livros um ao outro: - Porque é que a gente nunca dedicou um livro ao outro? - Achas que é preciso? e ficámos assim. Mas levas com o teu nome no romance negro que te lixas. E meto lá os teus bairros. E meto-te lá a ti, de personagem principal. Não todo, claro, certas coisas de ti. Fazes-me tanta falta, meu cabrão, há tanto para contarmos um ao outro. O fim de um amigo é um martírio, não páras de te agitar cá dentro, raios te partam. Tu e o Ernesto Melo Antunes: duas feridas abertas que não saram. Mas nunca tive uma intimidade assim com outro homem. Bom, adiante. O romance negro é uma promessa que te fiz e acabou-se. Continuo a não beber, continuo a gostar de comida de avião - Como posso ser amigo de um sacana que gosta de comida de avião? papava o meu tabuleiro, papava o teu, falávamos de bailes nos Bombeiros Voluntários Lisbonenses, boxe, bilhar às três tabelas, chocos com tinta (eu detesto) não falávamos de literatura nem do que cada um estava a lavrar. Mostrava-se acabado o trabalho, num tonzinho distraído -Queres ler isto? e, sem mais palavras, suspendiamo--nos num pingo à espera da opinião do outro, que se resumia sempre a uma frase vaga. Percebia-se o julgamento pelo clima à volta da frase, não pela frase em si. E era tudo. À medida que o tempo avança vai-se ficando despovoado. Os eucaliptos dos anos destroem tudo em torno de nós. Sobram cinzas, raízes, sombras, restos de pedras calcinadas, vozes ao rés da erva à procura da boca onde nasceram, a pedirem que as escutemos. O que se ganha em troca? Uma cor diferente no silêncio, aquilo a que chamamos sabedoria e não é mais que uma tristeza resignada. Outras pessoas habitarão aqui e a gente primeiro retratos nas cómodas, depois retratos nas gavetas, depois retratos na cave, depois nada. Cartas numa caligrafia antiga que um vento defunto inclina. E a morte final com o esquecimento do nosso próprio nome. Ficam os livros (ficarão os livros?) ficam os livros. Em certo sentido é terrível que a criação dure mais que o (ou vinte e seis?) de maio (vinte e oito) e o Manel, com a avó, a assistir ao desfile das tropas na Avenida da Liberdade, em que a avó lhe disse - Olha, filho, devia haver um decreto que proibisse as revoluções. Copinhos no balcão de cada bar, discotecas manhosas, nem uma palavra sobre literatura, claro. O Manel recrutava umas pequenas e, pelo retrovisor, assistia-lhe às manobras no banco de trás: quem começa o Cerromaior assim Antigamente o largo era o centro do mundo merece tudo. E um punhado de poemas de alta qualidade, ai as coisas incríveis que eu te contava assim misturadas com luas e estrelas e a voz vagarosa como o andar da noite. Mesmo posto corrido é do camandro. E a voz do Manel vagarosa como o andar da noite. Nunca tinha pressa, nunca o vi triste. Adorava andar à pancada. O Zé dizia que ele se fingia cobarde para os outros aumentarem e a seguir era um arraial de porrada que dava gosto. Para o Zé se exprimir assim, ele que sob esse aspecto não devia a ninguém, era de certeza. Manel. Só tenho pena que o Zé não se reconciliasse contigo por uma asneira velha, muito feia, que nunca te perdoou. Eu também não perdoei (não perdoo) mas esqueço sempre. - O Zé não vem conosco? perguntava o Manel, ansioso, e eu por dó Não pode a ver-lhe a aflição na cara. Deixa lá: antigamente o largo era o centro do mundo. E a quem foi capaz de dizer isto aceita-se tudo. Eu, pelo menos, aceito. E o Zé há-de aceitar, vais ver, é uma questão de tempo Fonte: Visão |
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