Foi sem rodeios que o convite à Mesa Bicuda do Lev´Arte foi aceite. Com o objectivo de manter viva a interação entre escritores e seus leitores, bem como a promoção de suas obras, a Mesa continua cada vez mais bicuda. Nosso ilustre convidado foi o escritor e jornalista Isaquiel Corí, nascido aos 12 de Agosto de 1967 em Luanda. Isaquiel escreveu:
Sacudidos pelo vento, UEA – 1996
O último feiticeiro, Chá de Caxinde – 2005
Pessoas com quem falar, UEA – 2006 (em co-autoria com Aguinaldo Cristóvão)
O último feiticeiro, Chá de Caxinde – 2005
Pessoas com quem falar, UEA – 2006 (em co-autoria com Aguinaldo Cristóvão)
No prelo está: O último recuo, Mayamba Editora.
Nguimba Ngola - Fale um pouco sobre a sua infância.
Isaquiel Corí - Passei praticamente toda a minha infância e adolescência no bairro Kassequel do Lourenço. Naquele tempo, estávamos em guerra (aliás a guerra sempre foi uma constante na vida das pessoas da minha geração) o dia a dia do bairro era bastante marcado pelo barulho dos aviões, sobretudo militares, com destaque para os Migs, que levantavam voo e aterravam no aeroporto bem próximo. A vedação do aeroporto era bastante imprecisa e havia pontos em que as pessoas atravessavam a própria pista. O grande quintal do aeroporto, no tempo chuvoso, ficava todo verde de capim e era habitado por várias espécies de animais, sobretudo insectos e pássaros. Nós, crianças, íamos à caça de pássaros e gafanhotos e brincávamos nas carcaças de aviões abandonados, ainda do tempo colonial. Lembro-me dum que era conhecido por todos como Barriga de Ginguba e hoje julgo tratar-se de um Hércules. Tínhamos bastante contacto com os cubanos, que tinham um quartel mesmo ao lado do supermercado Lourenço, por detrás da igreja católica. Lembro-me dos cubanos por causa das actividades musicais que organizavam, nas suas datas festivas, que eram abertas à assistência dos moradores do bairro. Naquele tempo era frequente brincarmos às guerras, os Cucuco contra os Sambequeque… Eram guerras travadas com pedras de areia vermelha no quintal do aeroporto, que estava recheado de grandes montanhas de areia vermelha. Frequentemente as batalhas desciam até às próprias ruas do bairro, para imenso desagrado dos nossos pais ou tutores. Enfim, tive uma infância igual ao das crianças do meu bairro, até que os meus olhos voltaram-se para o acervo muito bem guardado de livros, jornais e revistas pertença do meu irmão primogénito, o saudoso Borges. Passei então a sair menos para as brincadeiras com os outros para tornar-me num leitor obsessivo, diria mesmo compulsivo.
IC - Fui à tropa nas mesmas circunstâncias em que todos iam. Em 1985, ano em que completaria dezoito anos, fui apresentar-me. Estávamos no mês de Março e, portanto, ainda tinha 17 anos de idade. Como sabe, o cumprimento do serviço militar já era obrigatório.
IC - Tenho dito às pessoas que não sou um jornalista de raiz. Torno-me jornalista a partir da literatura. A partir de 1987 passei a enviar crónicas para o Jornal de Angola. Inicialmente eram publicadas na coluna “Cartas dos Leitores”, mas não tardou passaram a inseri-las no espaço editorial normal. Mais tarde o Jornal de Angola organizou os concursos literários “Jornal de Angola/Odebrecht” e “O Conto do Mês” e eu ganhei várias edições. Aqui devo render a minha homenagem ao falecido Victor Custódio Ribeiro, que foi dos que mais ganharam tais concursos. O facto de ter feito o curso médio de jornalismo deu ao aspirante a escritor, que até então era um obscuro “rato de biblioteca”, a possibilidade de enveredar profissionalmente pelo jornalismo.
IC - A fronteira é clara e não há que fazer confusão. O jornalismo tem regras claras, sendo que o profissional é escravo da verdade dos factos. O escritor rege-se pela profundidade ilimitada do seu sonho, é um construtor de verdades próprias, sonhadas. Mas do ponto de vista da técnica narrativa o jornalismo, em géneros como a reportagem e a crónica, bem pode, nos melhores profissionais, valer-se das conquistas da literatura. Por outro lado alguns dos grandes escritores há muito que incorporaram nas suas obras técnicas oriundas do jornalismo, até mesmo porque muitos deles foram jornalistas. Um bom jornalista, em princípio, tem a pretensão íntima de vir a tornar-se escritor.
IC - Tive a sorte de ter acesso a bons livros, desde sempre. Em casa tinha, para além dos grandes clássicos da literatura policial, várias antologias do conto português, brasileiro, norte-americano, latino-americano… Havia os romances de Hemingway (“O Adeus Às Armas”, “Por Quem os Sinos Dobram”, “O Velho e o Mar”), Somerset Maugham (“O Fio da Navalha”), John Stainbeck (“A Leste do Paraíso”), William Faulkner (“O Som e a Fúria”)… Porque na tropa tornei-me bibliotecário, o leque de opções alargou-se bastante. Foi aí que tive acesso à colecção Vozes de África, do INALD, que editou uma boa parte dos grandes escritores africanos. Mais tarde, quando passei a trabalhar na Biblioteca Nacional, as opções tornaram-se quase infinitas.
IC - Não. Cada um deles reúne em si características típicas do grupo a que pertencem. Qualquer um deles tem a ver com várias pessoas do tempo a que o livro se refere, muitas das quais estão vivas e se reconhecem, se sentem retratadas, na história do romance.
IC - Julgo que escrever um conto é muito mais difícil, por causa da alta intensidade e condensação narrativa que o género exige. Um romance escreve-se a si mesmo de modo tranquilo, exigindo do autor características praticamente extra-literárias, tais como auto-disciplina, auto-organização, perseverança e uma estratégia de criação clara e coerente.
IC - Não. Decididamente, apesar de ser um grande leitor de boa poesia, considero-me destituído de talento para escrever poemas.
IC - Ao invés de recuperar eu falaria em adquirir. Há que tornar a escola numa fábrica de leitores. Familiarizar a criança com o livro. Fazê-la descobrir que por detrás, ou no interior, do objecto material chamado livro há todo um mundo maravilhoso de conhecimento, histórias fantásticas de embalar, personagens de sonho, canções alegres. Fazê-la entender que o livro carrega toda uma vida virtual, praticamente toda a experiência humana. Que, a par da convivência social, a leitura é o grande pilar da existência.
IC - É evidente que cada um faz o uso da língua de acordo com o meio social em que vive. Quem aspira a ser escritor na língua portuguesa, naturalmente deve fazer um esforço suplementar para dominar aquele que será o seu instrumento de arte ou de trabalho, que é a língua portuguesa. Esse domínio passa pelo conhecimento da língua tal como é falada nos meios frequentados pelo futuro escritor, mas também das suas normas gerais, aplicáveis em qualquer circunstância. Da tensão que se vai criar entre o domínio da língua no meio, as leituras das obras de outros escritores e as normas gerais vai resultar certamente a linguagem própria do escritor, em função do seu talento e criatividade.
NN - Acredita que o livro tende a desaparecer ante os desenvolvimentos no campo das tecnologias de informação?
IC - Tenho acompanhado com muita atenção as notícias sobre as tendências recentes, resultantes da emergência dos meios audiovisuais e, nomeadamente, do e-book. Sinceramente, salvo a minha ignorância na matéria, não me vejo a ler um dia um romance na tela de um computador. Sempre associei o prazer da leitura ao uso e usufruto do livro enquanto objecto material, que tem peso e volume e que se pode tactear, cheirar e até encher a margem das folhas com as nossas anotações. Chamem-me arcaico mas é assim que eu amo o livro.
NN - O que acha da iniciativa do Lev´Arte?
Nas fotos:
Isaquiel Corí; Nguimba Ngola exibindo as obras do convidado; A plateia apreciou o evento vê-se a alegria; Kardo Bestilo, poeta e coordenador do Lev´Arte, apreciando atento o evento.
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