sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Poemas de Ruy Duarte de Carvalho


Memória da guerra em Julho

1

É preciso que aconteça numa manhã sem sol e sem/recurso para o cansaço que o corpo traz da noite. É preciso/também valorizar o medo. Dizer assim, talvez:/- a guerra continua, dormi a noite toda/e a guerra continua./

Uma luz como a de outubro surgirá em julho./Atingirá as formas como se as formas a desconhecessem,/como se até aí fossem rocha apenas sobre as areias que há/[no mar profundo/e não soubessem nada do seu próprio corpo/e a luz as dissolvesse numa excessiva sobre-exposição./Vem declarar, num instante, a anulação completa das/[idades./A progressão da luz e a regressão da forma./A dissolvência, em suma./
Os contornos estão perdidos para sempre. Agora é a memória,/memória, a madrugada, a opacidade imaculada do silêncio./
Esta era a profecia. O retrato fiel do fim do mundo./


2

É já apenas só uma memória./Falo da luz que irradiava dos cadáveres/e das águas fermentadas que os continham./Havia um frasco, enorme./Crescera desmedido para albergar compassos de uma guerra longe:/ os ecos todos dos obuses todos/ os glaciares do medo nas arenas do norte./
À volta uma manhã que era já quente, a luz rente de/outubro, a iminência da dissolução./E havia o frasco, um frasco enorme, prismático e aberto,/ retendo o amarelo de uma água velha,/ matéria a mais propícia à gestação dos limos e das algas./À tona alguns cadáveres, o ventre exposto, inchado e branco,/ alguns também retidos na verdura/ e os olhos sobretudo, provocação soberba da miséria./Quando isto aconteceu eu era muito novo/ e sem recursos para iludir surpresas./ Mais tarde atravessei cidades mortas/ Não as temi./Morte ou memória? Como entendê-lo agora?/


3

Os pequenos dragões puseram a gravata, ajustaram ao/corpo a couraça do orgulho, consultaram num instante a/cartilha da paz, e vieram para a rua comandar a guerra./A ordem de batalha está completa: o cancro explodirá/Pela madrugada. Nem as franjas da noite estarão/bastante longe. A flor do eco, que abre nos peitos um/lugar para a sede, oscilará suspensa no silêncio,/assegurando o gangrenar da aurora./


Os pequenos dragões esbracejam na penumbra. Estendem/o braço para afagar o ferro e aferem, um a um, os/potentes instrumentos da confiança. Os pequenos dragões/estão sobretudo ansiosos. Exibem, varonis, a ereção da/voz e arremetem-na de encontro à multidão para/fecundar-lhe o embrião da raiva./


A aranha é instalada nos baldios da fé. Assenta o peso/sobre a carne incauta e crava as garras, para se afirmar,/na oferta abdominal das hostes seduzidas. O ferro/arranca vivas de prazer. Entre dois crânios grandes um/pequeno, de forma a que não haja qualquer falha e se/edifique um piso só de crânios. O aparelho/vive de equilíbrios./


Os pequenos dragões não podem mais. É tempo já de/acometer a noite. As condições propícias estão criadas: há/já um cio para umedecer o medo. Sejamos fêmeas para a/ereção da armada. Do som haverá luz e das brechas da/carne escorrerão manhãs./
O sangue, hoje, é dos outros./


4

Acordas ansioso por saber das grinaldas que o sangue/abriu na noite. Enfrentas a manhã nua e devassa/como a parede branca a que se rasga a forma/de um cartaz antigo. Caíram os tapumes da confiança/e eis presente, como nunca adversa, a geografia/cada vez mais tensa./
vês a língua de areias servida de outra luz./A memória sumiu-se, cristalizou nos ecos./A gestação do medo arruinou as horas./


Ensaias o andar antes sabido. Apenas expões a pele/sem que o contorno do teu velho corpo/revele indícios do que lhe vai por dentro. Reinventas no/mundo a implantação do vulto, lavado agora das razões/seguras. Estar vivo e acometer a claridade/implica a vocação de afeiçoar o corpo à praça imposta./Há uma maneira apenas de enfrentar o frio./É transportar, por dentro, o mesmo frio. Não fere, a/decisão, muito para além das decisões alheias./


5

Nada mudou para quem delega a glória./Nada é tão grave que nos impeça os corpos./Estamos aqui, sentados, sabendo que o conforto/é só cá dentro e a casa é cheia de alegria e festa/e a carne é fresca porque viva e alheia/à carne longe, retalhada e fria./Somos de fato, em nosso apuro e com o nosso dote,/uma versão apenas indecisa/do nó que nos habita bem no centro./Rapazes, raparigas,/que cada um empunhe a flor oculta/para inseri-la entre pernadas jovens./
A morte longe enquanto nos arder/à flor da boca/esta atenção pela florações dos outros./


(1992, Memória de tanta guerra)
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Chagas de salitre

Olha-me este país a esboroar-se/em chagas de salitre/e os muros, negros, dos fortes/roídos pelo vegetar/da urina e do suor/

a carne virgem mandada/cavar glórias e grandeza/do outro lado do mar./
Olha-me a história de um país perdido:/marés vazantes de gente amordaçada,/a ingênua tolerância aproveitada/em carne. Pergunta ao mar,/que é manso e afaga ainda/a mesma velha costa erosionada./


Olha-me as brutas construções quadradas:/embarcadouros, depósitos de gente./Olha-me os rios renovados de cadáveres,/os rios turvos de espesso deslizar/dos braços e das mãos do meu país./
Olha-me as igrejas restauradas/sobre ruínas de propalada fé:/paredes brancas de um urgente brio/escondendo ferros de educar gentio./


Olha-me a noite herdada, nestes olhos/de um povo condenado a amassar-te o pão./Olha-me amor, atenta podes ver/uma história de pedra a construir-se/sobre uma história morta a esboroar-se/em chagas de salitre./


( 1976, in A decisão da idade)

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